Não
entendi o que o fez pensar que eu estaria disposta ao flete. Desde que eu havia
chegado naquele lugar, um calabouço escuro da Frei Caneca, fiquei sentada de
pernas cruzadas fazendo nada menos que gestos oscilantes entre o movimento de
sorver um ou dois goles de água. Água. Se ele fosse um pouco menos idiota,
perceberia que eu estava bebendo água e que, uma pessoa que não ingere álcool,
num sábado a noite, num bar cujo nome tem pronuncia francesa, porém escrita
brasileira, cercada por velhos, moços, moças, cheiradores, anarquistas, nerds
punheteiros e toda a gama de pessoas capazes de frequentar a Frei Caneca num
sábado de madrugada... bem, eu não estava disposta a flertar. Se ele fosse um
pouco menos babaca, perceberia que passei a noite grudada com o meu smart phone
preto, trocando mensagens com “sei lá quem”. Obvio que era com um homem. Obviamente
eu estava apaixonada. Que mulher idiota ficaria trocando mensagens com as
amigas num momento daqueles? Bebendo água e balançando os pezinhos calçados com
um sapatinho de sapatão? Ainda assim, ele não percebeu que eu estava de suéter,
cachecol, cabelo preso e completamente apaixonada. Ainda assim ele conseguiu
ser um otário, me olhando a noite toda e esperando o errado momento certo de,
feito um viking fedorento, enfiar a mão nos meus cabelos.
Filho da puta. Teve coragem de entremear
aqueles dedos imundos de cachaça nos meus cabelos presos. Tudo bem, mesmo que
amarrados os meus cabelos ainda aparentavam ser uma grande juba, deve ser
convidativo de fato... mas isso não significa que qualquer estranho possa se
apoderar deles. Era o que de mais sagrado havia no corpo: eram cabelos do
Robert Plant e isso não fui eu quem disse. Colocou as mãos no meu cabelo e saiu
sem dizer nenhuma palavra. Era tão idiota e babaca que esperou minhas
companheiras saírem de perto para se aproximar de mim. Tudo bem, foi rápido.
Fiquei quieta como se não tivesse notado tal audácia. Subi ao banheiro, mijei
em pé, senti o mijo escorrer nas minhas pernas, me limpei, lavei as mãos e o rosto
e saí. Tinha um brechó ali. Entrei. Perguntei os preços, cheirei as roupas...
não gastaria dinheiro com aquilo. Porra, eu estava num bar do centro da cidade,
tudo o que não me faltava era fazer compras naquele lugar. Sim, eu era
ridícula. Mas nem tanto.
Desci as escadas pensando apreensiva que
poderíamos ir embora. Já passava das 03:00 e eu estava exausta daquele lugar.
As pessoas – inclusive minhas três amigas – bebiam a porra de um drink que
chamava Tesão. Quisera eu ter ânimo e disponibilidade para beber aquela merda
que cheirava a licor barato. Aquilo era gorfo engarrafado, um nojeira sem
tamanho. [paro aqui de falar mal da bebida, pois se estivesse de coração vazio,
teria bebido dez doses daquela e agarrado o otário logo que ele me olhou pela
primeira vez] Quisera eu ter ânimo para um flerte naquela noite. Ânimo ou, sei
lá, menos humanidade. A merda estava feita: já era uma mulher apaixonada e não
sabia. Não largava a droga do celular pretinho, touchscreen, um deplorável
aparelho que eu costumava deixar jogado meses atrás. Agora eu não o soltava,
fazia questão de te-lo por perto por que queria saber a todo momento como
andava o meu, até então, “relacionamento”.
Sentei de pernas cruzadas novamente e
dessa vez pedi uma soda. “Soda. Isso, SODA! Com limão espremido no copo. Muito
limão! Ah, e sem gelo!” Foda-se o “sem gelo”: a porra da soda veio com limão
fatiado e muito gelo. Foda-se, bebi mesmo assim. Enrolei mais um tabaco e
resolvi que era hora de enfrentar o frio cortante do centro de São Paulo, onde
tudo cheirava a cocaína e metenlança sem camisinha. Saí. Dei dois tragos e
senti vontade de sumir daquele lugar: havia um casal de emos (sim, os emos,
aqueles de lápis no olho e tênis quadriculado) jogados na calçada, chorando.
Acho que estavam sem dinheiro pro táxi. Cheiradassos. Pensei comigo “Foda-se,
tem mais é que se fuder essa juventude de bosta” e, cansada daquela cena,
entrei na caverna. Ou, pelo menos, tentei. Senti uma mão pesada me segurando
forte pelo braço. Olhei para trás e era o segurança. “Que porra é essa?”,
perguntei puta, louca da buceta. “Preciso do seu RG, mocinha”, ele respondeu
com aquela cara de pastel amanhecido e eu repliquei “Eu já estava aqui dentro.
Solta o meu braço, caralho!” e ele, com jeito de cachorro cagado, disse
“Andreza?”, “Sim, meu!”. Me deixou entrar, desculpando-se sem querer e dizendo
que reconheceu meu rosto pela foto do meu RG que ele pegara um tempo antes, enquanto
eu cometia o imenso crime de entrar naquele lugar.
Não sei o que eu escrevia para ele
naquela hora, mas era algo do tipo “Quero ir embora, me salve!”, pois eu não via
a hora de chegar em casa, tomar um banho e espera-lo chegar. Eu estava na época
do amor, o estrago havia me cansado e tudo que eu queria era um ombro forte
para deitar minha cabeça e me fingir de garotinha frágil. Eu estava amando e
não sabia. E, enquanto amava, aquele negro otário se aproximava de mim sem que
eu percebesse. Colocou a mão no meu cabelo denovo. Levantei os olhos na
esperança de que fosse Helena ou Raquel. Não era. Era ele, com sua camiseta
azul e a cara de otário que não seria capaz de modificar nem com uma cirurgia
de reconstrução facial muito bem elaborada pelo Ivo Pitanguy. “Tira a mão de
mim”, falei, sem gritos e sem grosseria. Apenas falei. Ele tirou e,
rapidamente, prostrou a porra da mão nos meus cabelos denovo. “Tira a mão de
mim”, eu disse, empurrando o braço dele pra longe. “Seu cabelo é bonito. Você é
muito bonita”, “Ok”, respondi brava e cheia de raiva. Estava sem paciência,
oras. Esse cara tinha que aparecer bem na hora que eu dizia boa noite para o
meu futuro marido? “Pombas! Que merda!”, pensei. Ele deu meia volta e apareceu denovo
ameaçando um grito violento “Você é muito chata, moça!”, e eu, sem a mínima
vontade de argumentar com um verme bêbado, olhei e voltei a degustar minha soda
aguada. “Você é muito chata!”, disse mais uma vez, só que dessa vez num tom mais
baixo. Respondi, de cabeça baixa e fuçando a bolsa “Foda-se! Vá a merda,
cara!”. Ele saiu.
A situação não poderia estar pior. Eu
estava num lugar escuro, cercada por bêbados, totalmente sóbria, sendo xavecada
por um imbecil e amando a distância. Minhas preces foram ouvidas e, as 05:13 da
manhã, minhas amigas resolveram partir. Bingo! Agora eu poderia ir pra casa me
esquentar e esperar meu amor com as calcinhas infartadas.
Subimos as escadas tenebrosas, pagamos a conta
e, saindo do calabouço, sinto algo me puxar pelo braço denovo. Era ele, o
negro imbecil. Bonito, porém, imbecil. “Você é tão chata que até parece a minha
professora do primário!!!”. Olhei para ele com um semblante pesado, de quem só
queria que ele tomasse [no cu] um tiro na testa para que dormisse feliz naquele
resto de noite. Não disse nada, só levantei as sobrancelhas como quem diz
“Pena...” Não contente, ele gritou denovo “Certeza que você é petista e curtiu
a aliança do fulano com o Lula!!!” Depois disso, não tive sequer a coragem de
olha-lo. Desci os dois últimos degraus e encolhi os ombros para me proteger do
frio.
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