sábado, 1 de janeiro de 2011

Delírio

Eu estou cercado de flores e o meu pé já não se mexe. Acho que me esqueceram nesse quarto de hospital. Para dizer a verdade, eu não sabia que estava no hospital... Acabei de saber quando abri os olhos. Por quanto tempo fiquei aqui? Acredito ser muito tempo. Minhas mãos estão secas e escuras devido a quantidade de pelos que saltam da superfície de meus dedos. Minhas unhas estão amarelas feito papel velho. Estou velho.
Abro a minha boca vagarosamente e escuto o barulho da minha salivação. Sinto a saliva descer pela minha garganta: há muito tempo eu não sentia isso. Será que passei anos sem fumar? Quanto avanço. Chego a conclusão de que estive em coma por algum tempo. Não sei quanto tempo.
Meus braços parecem pesar cerca de dez quilos. Tento levantá-los em vão; a dificuldade é imensa. Noto que suspiro devido ao meu fracasso. Não controlo sequer os movimentos dos meus braços. Será que voltarei a andar, ficar ereto, estralar os dedos? Coisas randômicas que passam despercebidas no meu cotidiano e que agora lembro saudosistamente.
Escuto o som excitante e agudo de salto de mulher. Não estive com muitas mulheres que usavam salto na vida: as mulheres sedutoras jamais olharam pra mim e reciprocamente nunca me chamam a atenção. A enfermeira velha e gorda que some diante do vidro pequeno da minha porta é nada menos excitante do que a minha situação aqui.
Sinto-me morto. Há flores por todos os cantos desse maldito quarto. Pareço estar num cemitério. Um clima odiosamente bucólico instaura-se por aqui. Repudio esse cheiro de mato e coisa da natureza. Quero botar meus pés no chão e ver como anda essa cidade linda e cinza. Mas estou preso dentro de meu próprio corpo. Quando alguém vai abrir essa droga de porta branca? “Enfermeiras, preciso de alta!”
Pouco a pouco começo a lembrar das coisas que eu gosto de fazer quando não estou em coma. Quero ouvir uma musica clássica e beber absinto. Quero ouvir o barulho dos pios da minha cacatua Ana. Quero cortar meus braços e pintar com sangue uma nova tela. Ah, eu amo aquelas pinturas feitas de sangue. Meu DNA perdido no meu trabalho, algo profundo e profano. Quero comer carne vermelha e palitar os dentes. Quero também beber cerveja. Quero fumar muitos cigarros. E que quero rezar para Buda, pois eu acredito nele – um velhinho obeso e simpático.
Uma samambaia ao meu lado. Que grande porcaria essa flor aqui. Qual é a utilidade de uma flor? Isso só pode ter vindo de uma pessoa: meu amigo Pedro. Ele tem essa mania de natureza e de comer porcarias verdes e integrais. Ele anda de chinelo. Quem foi o desgraçado que inventou o chinelo? Calçado ridículo que só serve para mostrar os dedos horrendos das pessoas. Mas voltando ao Pedro: ele anda de chinelo e calça. Sempre que o vejo ele esta com touca e nunca tira os óculos de sol. Nisso nós concordamos. Não existe no mundo nada mais indispensável do que os óculos escuros, mesmo durante a noite. O Pedro gosta de tomar chá e de animais. Eu gosto dos animais que podem estar na minha mesa durante o janta. Exceto a Ana. A Ana é uma cacatua linda. Companheiríssima.
Essa samambaia está olhando para mim. “Planta amaldiçoada, olhe para o outro lado por que você me incomoda.” Ela não para de olhar. A desprezível me encara nos olhos. Ah, se eu pudesse me levantar daqui. Jogaria esse lixo pela janela e gostaria que caísse milimetricamente na cabeça do Pedro. Aquele animal. Aquele hippie imundo.
Onde fora parar aquela vagabunda vestida de enfermeira? Estou sozinho aqui e preciso de uma explicação. Não sinto um bom cheiro vindo de mim: devo estar tão fétido quanto os esquilos do Pedro. Preciso de um banho, uma dose e uma explicação. Não me lembro de nada: sei que sou artista, moro no Alto Ipiranga, tenho uma cacatua linda e um amigo idiota. Quero a minha vida de volta. Bem lembrado: quero uma mulher nua também. Mas para isso preciso saber se ainda consigo ficar ereto.