terça-feira, 23 de outubro de 2012

A flor e a náusea - Drummond


Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas,
consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Não consigo suportar meus pesadelos

Queria saber de onde vem uma angústia fria que recorre sem parar e jamais se cansa de espremer meu peito numa caixa torácica ridícula, frágil e useless. Não sei qual é a proveniência de tal sentimento nefasto, mas acredito que me falte liberdade. Ou coragem. Costumo dizer que pessoas corajosas são genuinamente livres, pois elas não temem. O que mais me aprisiona é o medo do fracasso. Me cobro enquanto todos repousam angelicais. Me cobro por não ter coragem de me desgarrar do mundo e partir, finalmente. Para onde? Não sei, sou livre de objetivos, apenas. Alguns objetivos mentirosos criei para ser sociável, pois ouvi dizer que o ser humano só existe por que convive socialmente. SO-CI-AL-MEN-TE: está aí uma palavra que me causa asco em turbilhões. Não gosto de regras, pois prefiro o amor e respeito grudados. Não gosto daqui e não gosto de lugar nenhum, pois não conheço o mundo por inteiro. Quero ser pertencente. Quero uma máquina de grana e um sublime contentamento com a realidade. (livre de anti depressivos) Queria humilde e simplesmente fazer somente aquilo que me alegra. De fato.

16/10/12 - Não consigo suportar meus sonhos

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Andar com teus pés eu irei até quando for possível.

            Em questão de dias atrás, chuvas que não chegavam em junho, sóis que derramavam desafeto em julho, amores oceânicos em agosto, plenitude eterna desde setembro. Em questão de dias atrás, meses passados rapidamente, horas arrastadas e minutos calculados com sangue de quem sente saudade. Em questão de dias atrás deparei-me com uma brusca mudança de vida. Senti cada célula derreter-se a partir de algo que me faz sentir um parasita que não se cansa de sugar os mais nobres fluídos do corpo mais amável e sublime com o qual já me deparei em sã consciência. Já havia sonhado com muitos corpos, porém, só fui capaz de tocar um deles. O corpo que decidi, certeira, cativa, de uma vez: será meu para sempre. Será nosso, será fruto, será espinho, dor, amor, constância e inconstância. Sinto que sou diabo indigno de olhar teus olhos de bolinha de gude. Sinto que sou um diabo indigno ao sentir o cheiro da tua pele, ao beijar a superfície dela, ao enlaçar minhas pernas nas tuas, ao lamber teus dedos, ao exigir, sem vergonha, “Casa comigo!” Sou vítima desse cruel mundo que nos contorce entre tantas dores, mas, inacreditavelmente, dentro do limbo pelo qual me sinto cercada (e com o qual me identifico, humanidade demais, desejos demais, ganância, falta de fé) encontrei o que parecia ser impossível, pois eu julgava impossível. Hoje sei de que se tratam os escritos de Camões, a tristeza de Nietzsche, a impossível cura para a angústia predominante de Schopenhauer. Se você não me correspondesse, eu deteria de ser um desses diabos incompreendidos. Eu teria que me acostumar com a blasfêmia, com o pó e o fedor mundano. Andar com teus pés eu irei até quando for possível. Gostaria de ser assim, menos humana.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Víscera magoada

Não buscamos a mágoa. Ela ocorre como que num movimento de choque repentino e dolorido: sorrateiramente. Basta cerrar os olhos e dar um respiro atravessado. Basta.

Não existe dor maior do que magoar o ser amado.

Quando tal revés acontece, sentimo-nos como lagartos de patas amputadas, repudiáveis serpentes sem alma.

O amado é sereno.

O amado é bruto.

O amado é intocável.

Sacro.