terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Abel, agradeça ao John


Cabelos loiros, encaracolados, cobrem meu rosto quando acordo e um peso confortável está em cima de mim.
E essa ressaca. Minha única vestimenta, meu relógio. São... duas e quarenta da tarde. Parece que estou semi-morto. É por isso que eu não saio de casa. É melhor ficar em casa remoendo meus problemas do que aguentar esse tipo de efeito pós-seja-lá-o-que-tenha-havido-aqui.


Ontem os caras conseguiram me tirar de casa.
- Você precisa sair, se divertir. Pensa que não precisa, mas precisa, e tem o Abel...
E tinha o Abel. Quando alguém está mal, por algum motivo, costuma pensar que está sozinho, mas o fato é que sempre tem alguém pior do que você. O cara pior, dessa vez, era o Abel. Incrivelmente, o Abel. Uma pessoa sempre controlada. As pancadas que a vida dá.
Não interessa qual o problema, sempre tem alguém pior. Também não sei como é o fim dessa linha, quem é o pior dos piores, se é que seria possível, já que sempre teria alguém pior... Bah, enfim, eu, Diogo e Abel fomos pra uma boate que o Diogo conhecia. Diogo, único de nós em estado de verdadeiro bom humor, teve a ideia. Gosto do escuro desse tipo de lugar e também havia um balcão no bar, onde eu poderia passar a noite toda, sentado, já que dançar é algo que eu não faço. Após termos entrado e andado um pouco pelo local, observando as pessoas, Diogo aproximou-se de mim e declarou:
- Hoje eu transo.


Onde está o Abel agora eu também não sei. Será que devo me preocupar? O Diogo eu consigo ver daqui, derrotado, na outra cama. Até que minha ressaca não está tão forte, felizmente. Gostei desses cabelos. Não havia reparado neles antes. Pensando bem, acho que não reparei em muita coisa. Gosto dessa cor de pele. Não lembro do rosto. Me estico um pouco e observo. Bonita. Nunca vi na vida.


Havia muitas mulheres bonitas dançando e poucos homens na pista. Dançavam umas com as outras. E eram bonitas mesmo, lindas. Uma cena ótima. Depois que paramos no bar e pedimos cerveja, percebi que o Abel as olhava discretamente, um tanto de lado, como se estivesse achando tudo aquilo terrível:
- E aí, Abel.
Ele me olhou com os olhos baixos, como se estivesse com vergonha de alguma coisa, porque entendeu o que eu quis dizer:
- Tá foda, precisava mesmo sair de casa.
- Sei como é.
Diogo percebeu o assunto desanimador e disse que o importante era saber que se distrair ajuda, mesmo não sentindo vontade. Tem que fazer um esforço, se obrigar. Disse isso e reconheceu um outro cara, a uns cinco metros de nós, num canto. Sorrindo muito, visivelmente contente, apontou para ele o dedo e disse:
- Caaara, você!!!
Andou então até o conhecido e ficamos eu e Abel no bar. Eu falava o que eu sabia que precisava falar:
- Depois de um tempo você não liga tanto assim, mesmo que pareça impossível no começo.
- É. Eu sei.
Abel respondeu, deu um sorriso leve, que pensei ser forçado, e passou a olhar menos nervoso para as mulheres que dançavam. Você deve saber, Abel, pensei, mas saber é só uma parte. Daqui pra frente nem eu sei ao certo o que fazer. E o Diogo é um filho da puta que desapareceu, eu pensei depois de mais algum tempo. Como é que eu poderia fazer companhia pro Abel, nesse estado? Minha sorte é que ele não fala muito, então até que tudo bem se a gente podia só ficar ali observando as garotas.


E o nome? Não consigo lembrar. Obviamente eu ouvi, mas não lembro. Não sei, Jéssica talvez? Tinha E em algum lugar. Letícia, Débora, não sei. Puts. Percebo que não lembro de mais do havia me dado conta e começo a me preocupar com o Abel. Não lembro dele desde o momento em que o Diogo voltou ao balcão, onde estávamos, acompanhado do amigo que ele encontrou. Isso aconteceu muito depois depois de seu desaparecimento e eu e Abel já estávamos bem à frente nas cervejas.


Caras, achei aqui o que vocês precisam. Consegui com o John. Esse é o John. Esses são os caras, John.
E colocou alguma coisa dentro da minha longneck e também na do Abel.
E aí, John. Que que é isso, Diogo?
Um estimulantezinho que o John costuma revender por aqui. Que sorte a gente ter encontrado ele, ein?! Não é nada pesado, ele me garantiu, e eu já usei bastante, pode ficar tranquilo.
Abel parecia com medo. Olhou pra mim com os olhos arregalados. Abel sempre foi o responsável. Se não estivesse numa crise pessoal, estaria cuidando de nós quase como um irmão mais velho. Já teria me reprimido pela quantidade de cervejas que bebi (na verdade, precisaria ser um irmão bem mais velho pra isso).
Sério, Diogo? Que merda é essa?
O tal John olhou pra mim com o olhar que diz tu é careta demais pra tá aqui.
Fica tranquilo. Fica tranquilo, Abel. Vai ser como... Vai ser como tomar bastante energético de uma vez, mas é um comprimido. Porra, muita explicação em cima de algo que a gente devia curtir e não explicar, ein? Chega disso.
Tá. Whatever.
Explicação demais mesmo. Eu tava bem ali sem muita conversa, só olhando pras bundas das meninas. Querem me drogar, ok, contanto que eu continue aqui e que as meninas continuem onde estão. Continuei bebendo minha cerveja, a partir de então temperada com sabe-se-lá-o-quê.


Ela começa a despertar, encolhendo-se um pouco, fazendo força, mas suave, gemendo baixo. Me aperta um pouco no abraço, levanta o rosto, acordando com muito mais certeza dos fato do que eu tinha, e diz, sorrindo, com os olhos apertados de sono:
- Oi.


Eu estava em pé no meio da pista de dança, com minha longneck na mão, vazia. Vazia, já há bastante tempo. Minha cabeça preenchida. Era muito melhor observar todas aquelas bundas e pernas de perto assim, num campo de visão de trezentos e sessenta graus. Diogo dançava com uma garota de vestido vermelho bastante curto. Era o som que preenchia meu cérebro. Ela rebolava muito com a bunda encaixada no quadril dele, se esfregando, e ele até esquecia de se mecher pra olhar pra aquilo de boca aberta, as mãos, sem tocar, mas quase apertando, moldando as nádegas da garota, mãos em posição de recepção de milagre, como quem diz Deus é o senhor é a tua graça muito obrigado Jesus. Eu ri tanto que perdi a força e deixei a garrafa cair no chão. Não quebrou. Abaixei com muita dificuldade pra pegar. Enquanto eu abaixava o som parecia mudar. Cheguei em baixo e fiquei no nível das bundas. Eu queria continuar ali, só olhando pra elas, mas meus olhos se fechavam enquanto eu ria incontrolavelmente. Fiquei abaixado. Ri. Esperei. Levantei (me levantaram). Diogooooo. Me abraçou. É, cara, não te disse? Cara. Cara... CARA, você disse! To vendo, to vendo. Essas são as meninas, meninas, esses são os caras. Cadê o Abel? O Abel, não sei, ele tá por aí. Hah, Hah. As meninas dançavam e riam bastante. No escuro, as poucas luzes correndo, mudando, piscando. A fonte da música eram as profundezas da minha mente. Um harém eclíptico, pensei, eclíptico, que porra de palavra é essa. É de eclipse, eu explicava a mim mesmo, é como um eclipse, as luzes mudando aqui e esse monte de lua, de bunda iluminada. É, foi isso. Eu tava explicando uma coisa pra mim mesmo. A música era ruim.


- Oi. Respondi sorrindo, fingindo não estar apavorado.
Dá um beijo no meu ombro, deita de novo, agora com o rosto virado para mim e volta a dormir. Eu espero um pouco, me arrasto para o lado, me viro de leve, tento não ser brusco e... Consigo escapar. Que merda. Diogo e mais duas garotas que estão com ele na outra cama aparentemente jamais irão despertar. Eu sento na cama e percebo: tem mais uma mulher no chão. Nota mental: nunca mais adquirir produto algum de alguém chamado John, só por segurança. E quem diabos é essa menina aqui!? Recolho minhas roupas no chão. Demoro muito pra encontrar um dos tênis, que está no outro canto do quarto. Ninguém reage ao barulho que faço. Me visto. A carteira e o celular estão ainda, pelo segundo milagre em menos de vinte e quatro horas, dentro dos bolsos da calça, intactos. Vejo uma pista sobre quem pode ser essa menina: o vestido que está no pé da cama é vermelho. Abro a porta do quarto e saio. Considerando o ritmo da coisa, espero encontrar mais alguma mulher nua, mas a sala do apartamento do Diogo está vazia. A luz do Sol entra aqui com muito mais força do que no quarto e meus olhos doem se eu olho para a janela. A porta está destrancada, eu giro a maçaneta e um grande peso empurra a porta. Abel cai no chão, sobre o solado da porta, todo encolhido. Ele acorda, tenta me olhar e estende a mão que segura obstinadamente uma sacola de farmácia:
- Ô, cara. Eu trouxe camisinhas pra vocês.


H.G.S.

sábado, 19 de janeiro de 2013

extract

"I have fought for what I believed in for a year now. If we win here we will win everywhere. The world is a fine place and worth the fighting for and I hate very much to leave it. And you had a lot of luck, he told himself, to have had such a good life. You've had just as good a life as grandfather's though not as long. You've had as good a life as any one because of these last days. You do not want to complain when you have been so lucky. I wish there was some way to pass on what I've learned, though. Christ, I was learning fast there at the end. I'd like to talk to Karkov. That is in Madrid. Just over the hills there, and down across the plain. Down out of the gray rocks and the pines, the heather and the gorse, across the yellow high plateau you see it rising white and beautiful. That part is just as true as Pilar's old women drinking the blood down at the slaughterhouse. There's no one thing that's true. It's all true. The way the planes are beautiful whether they are ours or theirs. The hell they are, he thought."

in For Whom the Bell Tolls, 467, Ernest Hemingway

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Seios

ilustração de Andreza S. Ballan
em parceria com Leandro Valentin

eu sei
ela seios
ele sem
e tu?
nós somos
vossos seios.
tu é ela então?

eu sei,
ela seios.
sem esses seios,
não sei mais,
assim bem,
se eu posso continuar
sabendo e sendo
eu.

pois então, agora sim
eu sei que eu,
ela (ou tu)
e os seios
somos nós.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Se não sabe escrever, nem desenhar, desenhe.


Saturno



Eu sentia fome. Muita. Três dias atrás. Agora não sinto mais. Estou aqui outra vez. Toco a campainha e aguardo. Mão no bolso da jaqueta, confiro outra vez. Eu avisei que viria. Ela abriu a porta. Oi. Olá. Vim comer, de novo. Risos. Agora eu não tenho mais fome. Entrei. Já faz três dias. Pois é. Quadros nas paredes. Provavelmente nunca parou pra pensar neles. Essa coisa, o tempo. Tem festa hoje. Onde, lugar de sempre, aniversário de Alguém. O Tempo. Nenhum desses quadros me agrada agora. Algo estava destruído agora. Alguém estava destruído agora, deixado para trás. Mão no bolso. O que se faz com fome... quem vai entender essas coisas. Você vai? Sim, começa às 20:00. Já está destruído.
Mão no bolso. E aí, (enfiei os dedos nos orifícios do soco-inglês) tá com fome? Agora eu não tenho mais fome. Tirei a mão do bolso e mandei o primeiro. Direita. No queixo. Mas. Não caiu, mas vai cair. Não tenho um pingo de dó. Não tenho fome. Tenho outra coisa, chamariam de raiva. Bati. Caiu. Caí por cima. Maxilar. Testa. Peito. Costelas. Olho. Nuca. Já apagou. Foda-se. Eu já dei outro nome. Foda-se. De relance, um quadro. Barco de pesca em mar bravio. Estão por toda parte e ninguém os entende. Hoje eu tenho medo. Bati até meu ombro começar a doer. Não que eu esteja velho, é a falta de exercícios. O Tempo. Sangue. Não me sinto melhor. Sabia que não. Já foi. Sangue por todo lado. Já está destruído. Isso é só uma descarga inútil. Não há volta. A culpa nunca morre. Ficando em pé, pisei num dente perdido no piso. O Tempo nunca morre. Não tenho fome. Não é raiva, é o desespero. Meu tempo passa e eu não posso voltar atrás. Gemidos. Vai acordar no inferno, puta. Muito sangue. Três dias em desespero. Bati mais. Bati até arrebentar tudo. Não tenho mais fome. Jamais terei. Já sei que pintura eu gostaria de admirar agora. O Tempo é cruel com os homens, assombra a todos. Os homens são cruéis uns com os outros. Quem aqui está livre? O Tempo. Tempo, engula mais um de seus filhos. O corpo branco, sangrando, é até infantil nas mãos do Tempo. Vejam o olhar que tem Saturno enquanto devora a cabeça de seu filho, mergulhado na escuridão. Não é fome, é medo.

H. G. S.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Coisas que eu escrevia durante as aulas de legislação no primeiro ano

"Oh, vida...
Oh, céus!"

Soprou em minha orelha a ovelha. Nada do que aquela humorista falasse era capaz de me fazer brotar antenas.
Era choro agudo demais, um tremor rutilante na garganta. Beijava meus pés e pedia sofrendo para que eu olhasse seus olhinhos.

Eu amo muito de dia e a noite eu vou pra farra.