segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Caro marido...

Já não sei o que me lembram mais essas tuas mil faces. De dia és assim: bonito, bom moço, bem vestido e polido de educação. À noite és um deus, uma figura mística, misteriosa e adornada de meias verdades. Não sai de si sequer um minuto, leva as situações ao fio da razão e jamais me implora clemência. Não compreendo a ti, mas sei que a tua persona – não grata – me compreende e me desvenda. Tira a minha mascara como quem tira a minha roupa. Despindo-me, fazendo de meu corpo um poço gélido, sem proteção, livre de armaduras e sujeito a destruição do teu olhar nocivo de brasas.
Eu quero que você me veja e me deixe te ver. Desejo tocar a tua alma como tocas a minha. Penetra no âmago do meu ser sem pedir licença e sem reparar os estragos causados. Desejo ver-te uma vez, ainda que somente uma vez, limpo daquelas tantas desculpas miseráveis que arranjas para me fazer ficar calada. Eu fico quieta, não solto um pio, uma palavra e nenhum suspiro. Você me ensinou pela dor a respeitar-te. O meu respeito te faz ser o rei que tu és, o grande general dessa casa, comandante/marido.
Mas enquanto ficas assim, alheio as tristezas da tua esposa querida, encontro nos braços daquele rapaz bem gentil o afago que não recebo em meu lar. Se soubesses disso me deixaria de castigo, doaria minhas jóias e meus chapéus de pele de chinchila. Faria de minhas unhas, garras caninas, grossas e sujas. Destruiria a minha beleza de dama tão maravilhosa e cordialmente direita que sou. Será em vão, meu caro marido. Fizeste com que eu ficasse aqui, frente ao fogão cuidando de tua saúde: mesmo estando em casa continuo a pensar com a alma impiedosa feminina que tenho. Nós, belas damas, não somos caridosas. Ousamos de intempestuosidade para com vocês e levamos a vida como a vida nos leva.
o amor é uma bosta que quando pisada, suja a nossa vida e acaba com a algria da limpeza e felicidade da liberdade.
"Ouça-me bem amor, preste atenção: o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões à pó."

Do mestre Cartola, O mundo é um moinho.